24.7.07

A Fila para o Canto

Reflexão feita a 14 de Janeiro de 2006



O “Canto” glorioso!

Apesar das muitas coisas que me possam surpreender neste belo país insular (do qual ainda não conheço nem um terço), existirão sempre aqueles fenómenos que conseguem tocar no nosso botãozinho do espanto extremo a ponto de exclamar Que horror!.
Mas, repare-se que não é um que horror à jet-set, nem nada que se lhe pareça. Não tenho qualquer pretensão social a tia e creio que o Clube de Cascais também não me aceitaria, pois reconheço que não possuo pedigree à altura. Prefiro as idas ao mercado, também conhecidas por Tours à Feira 5th Avenue, comprar perfumes inspirados nas lojas dos chineses; tal seria algo aceitável e não demasiado dispendioso, desde que soubesse manter uma prosa do foro económico com os tendeiros e ciganos (vulgarmente conhecida como regatear os preços, pedindo num tom melodioso e arrastado Ó vizinhaaaa, baixe lá iiisso. Cinqu’eros é muuuito). Por outro lado, ir com frequência ao cabeleireiro entraria um pouco em choque com o meu orçamento mensal e, infelizmente, não tenho euros aborrecidos na carteira. Comigo, o dinheiro insiste em fazer esforço físico regularmente, seguindo com atenção e com o maior dos zelos as ordens do médico. Apesar de serem seres não vivos, o papel e as notas possuem vontade própria. Por isso, que posso eu fazer?
Voltando ao pensamento original, um desses insólitos de se ficar de boca aberta sem preocupações de se mostrarem as cáries e os dentes chumbados é a famosa “fila para o canto”. O sentido primário e literal é o correcto e o pretendido. Qualquer canto, qualquer esquina de um edifício com um muro, com ou sem montinho de terra na base, é um dos locais de primeira escolha para o mudar a água às azeitonas (as expressões e provérbios populares são sempre uma boa escolha para transmitir momentos preciosos de sapiência popular). O porquê de se escolher um lugar público para se proceder a um acto tão íntimo, mas também tão natural e necessário, é fácil de se explicar: trata-se de um recurso sempre disponível quando não existem outros melhores, como uma casa de banho. Além disso, em último caso, quando a aflição é grande e o cliente é pouco exigente, ou simplesmente porque não consegue domar a sua vontade, a própria parede, desprovida de qualquer canto, serve.
Creio que deve haver algum critério na escolha do canto, pois é normal verem-se filas compostas, sem qualquer cerimónia, mas muito ordeiramente, por dois ou três indivíduos. Também existe o canto com direito a música ambiente em versão de assobio, disponibilizada gratuitamente pelos “esperantes”.
Possivelmente, os “utilizadores do canto”, aquando do momento da escolha, devem levar em conta o ângulo do canto, a estrutura que suporta esse mesmo canto, o material do qual é feito e eventualmente o grau de absorção do mesmo. Outro aspecto essencial a ser considerado é o montinho de terra que finaliza a estrutura e que, fundamentalmente, está na base deste acto. Este factor não deve ser negligenciado senão as consequências são gravíssimas e bastante desagradáveis. Os elementos naturais também têm voto na matéria, em especial o vento, que bastante habilmente desvia a trajectória do famoso líquido, que por si já é bastante traiçoeiro e sem rota definida. Contudo, a prova dos nove é apenas tirada na parte final aquando da famosa sacudidela do pingo. Este é bastante insubmisso e facilmente mancha descaradamente a calça, quer seja de ganga ou de tecido de domingo. Neste caso, tudo o que vem à rede é peixe.
Todo o cuidado é pouco, mas creio que com a experiência, tudo se consegue. Há que considerar todos os elementos e colocar as várias hipóteses de modo a que a experiência seja bem sucedida. Este acto requer alguma experiência e mestria, com recurso frequente ao processo de “tentativa-erro”, que tanto ensinou durante a infância. Desengane-se aquele que considera que consegue, na primeira tentativa, despejar o seu saco urinário sem sofrer qualquer contratempo.
É óbvio que esta actividade é exclusiva para a parte masculina da população; a natureza não dotou as mulheres com estes instrumentos despreocupados e livres de preconceitos. Mas também não ficaram indefesas: bem hajam as saias compridas e o capim alto!
Todo este acto, quando levado a cabo em público, choca e espanta os transeuntes ingénuos e ignorantes das tradições e costumes populares dos são-tomenses, mas os conhecimentos culturais que deste pequeno acto advêm são gratificantes e ultrapassam o espanto e choque iniciais.

Elizabete Luís

1 comentário:

Anónimo disse...

O "fila para o canto" está mesmo instituído. Parece que há tempos tentaram refrear esta prática, colocando polícias de metralhadora à espera dos "aflitos", mas sem sucesso...
Excelente crónica!

 
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